Um janeluco entreaberto, deixando entrar a luz enfraquecida de inverno e o ar puro que carateriza a Aldeia transmontana de
Águas Frias – Chaves – Portugal
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METO-ME PARA DENTRO
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Meto-me para dentro, e fecho a janela. Trazem o candeeiro e dão as boas noites, E a minha voz contente dá as boas noites. Oxalá a minha vida seja sempre isto: O dia cheio de sol, ou suave de chuva, Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo, A tarde suave e os ranchos que passam Fitados com interesse da janela, O último olhar amigo dado ao sossego das árvores, E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso, Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir, Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito. E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
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___________ Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) _______________
No mais verde de nossos vales, habitado por anjos bons, antigamente um belo e imponente palácio - um palácio radiante - se erguia. Nos domínios do rei Pensamento, lá se achava ele! Jamais um serafim espalmou a asa sobre um edifício só metade tão belo. . II
Estandartes amarelos, gloriosos, dourados, sobre o seu telhado ondulavam, flutuavam. (Isso, tudo isso, aconteceu há muito, muitíssimo tempo.) E em cada brisa suave que soprava, naqueles doces dias, ao longo do muros pálidos e empenachados, se elevava um aroma alado.
. III
Caminhantes que passavam por esse vale feliz viam, através de duas janelas iluminadas, espíritos que se moviam musicalmente ao som de um alaúde bem afinado, em torno de um trono onde, sentado, (Porfirogênito!) com majestade digna de sua glória, aparecia o senhor do reino.
Como a pandemia causada pelo vírus COVID-19, continua e obriga, para a proteção de todos, a confinação social. Assim, tal como no Domingo de Ramos, não haverá qualquer manifestação religiosa e portanto, não há a eucaristia da Páscoa e a tradicional e emotiva Visita Pascal.
2020 ficará na nossa memória como um ano diferente ... mas a memória não se apaga.
Assim, em cada casa, poderemos relembrar como foram as anteriores Visitas Pascais, nesta pequena mas bela aldeia transmontana.
O meu singelo contributo será, partilhar os registos fotográficos que captei em anteriores anos, desta tradicional Visita Pascal pelas casas, que se abriam para receber Cristo Ressuscitado.
A lenda do folar da Páscoa é tão antiga que se desconhece a sua data de origem.
Reza a lenda que, numa aldeia portuguesa, vivia uma jovem chamada Mariana que tinha como único desejo na vida o de casar cedo. Tanto rezou a Santa Catarina que a sua vontade se realizou e logo lhe surgiram dois pretendentes: um fidalgo rico e um lavrador pobre, ambos jovens e belos. A jovem voltou a pedir ajuda a Santa Catarina para fazer a escolha certa.
Enquanto estava concentrada na sua oração, bateu à porta Amaro, o lavrador pobre, a pedir-lhe uma resposta e marcando-lhe como data limite o Domingo de Ramos. Passado pouco tempo, naquele mesmo dia, apareceu o fidalgo a pedir-lhe também uma decisão. Mariana não sabia o que fazer.
Chegado o Domingo de Ramos, uma vizinha foi muito aflita avisar Mariana que o fidalgo e o lavrador se tinham encontrado a caminho da sua casa e que, naquele momento, travavam uma luta de morte. Mariana correu até ao lugar onde os dois se defrontavam e foi então que, depois de pedir ajuda a Santa Catarina, Mariana soltou o nome de Amaro, o lavrador pobre.
Na véspera do Domingo de Páscoa, Mariana andava atormentada, porque lhe tinham dito que o fidalgo apareceria no dia do casamento para matar Amaro. Mariana rezou a Santa Catarina e a imagem da Santa, ao que parece, sorriu-lhe. No dia seguinte, Mariana foi pôr flores no altar da Santa e, quando chegou a casa, verificou que, em cima da mesa, estava um grande bolo com ovos inteiros, rodeado de flores, as mesmas que Mariana tinha posto no altar. Correu para casa de Amaro, mas encontrou-o no caminho e este contou-lhe que também tinha recebido um bolo semelhante.
Pensando ter sido ideia do fidalgo, dirigiram-se a sua casa para lhe agradecer, mas este também tinha recebido o mesmo tipo de bolo. Mariana ficou convencida de que tudo tinha sido obra de Santa Catarina.
Inicialmente chamado de folore, o bolo veio, com o tempo, a ficar conhecido como folar e tornou-se numa tradição que celebra a amizade e a reconciliação. Durante as festividades cristãs da Páscoa, os afilhados costumam levar, no Domingo de Ramos, um ramo de violetas à madrinha de batismo e esta, no Domingo de Páscoa, oferece-lhe em retribuição um folar.
Um horizonte, — a saudade Do que não há de voltar; Outro horizonte, — a esperança Dos tempos que hão de chegar; No presente, — sempre escuro,— Vive a alma ambiciosa Na ilusão voluptuosa Do passado e do futuro.
... o gatito que "fugiu" para o campo para evitar o contacto social com outros gatos ...
Os doces brincos da infância Sob as asas maternais, O vôo das andorinhas, A onda viva e os rosais; O gozo do amor, sonhado Num olhar profundo e ardente, Tal é na hora presente O horizonte do passado.
... casa na Aldeia (Lampaça) ...
Ou ambição de grandeza Que no espírito calou, Desejo de amor sincero Que o coração não gozou; Ou um viver calmo e puro À alma convalescente, Tal é na hora presente O horizonte do futuro.
... ave colorida (Pisco de peito ruivo - "Erithacus rubecula") de belo canto, alegrando o "silêncio" dos campos ...
No breve correr dos dias Sob o azul do céu, — tais são Limites no mar da vida: Saudade ou aspiração; Ao nosso espírito ardente, Na avidez do bem sonhado, Nunca o presente é passado, Nunca o futuro é presente.
... a igreja matriz, mesmo em situação de "quarentena" ladeada de árvores "vestidas" de flores brancas ...
Que cismas, homem? – Perdido No mar das recordações, Escuto um eco sentido Das passadas ilusões. Que buscas, homem? – Procuro, Através da imensidade, Ler a doce realidade Das ilusões do futuro.
... galinhas caseiras Vivem alegremente (afinal não é a "gripe aviária") ...
Só quem não sabe a terra que pisa se pode admirar deste março, marçagão com manhãs de inverno e tardes de verão, do friozinho nocturno, das intermitências de chuva, e, também, das abertas de sol que logo põem um frémito de esperança na aspereza do tempo.
... os "pinchéis" - flor campestre que anuncia a chegada da primavera ...
A neve branca das cerejeiras, como eu costumo chamar, às flores brancas que povoam agora o lugar do Passal e aqui e além pelos campos da Aldeia.
... as amarelas mimosas e brancas flores de árvores de fruto, alindam
a perspetiva da torre sineira da igreja ...
Por vezes ando por esse território de fantasia, assim podemos dizer, e mais uma vez aquele sentimento de deslumbramento me encheu os olhos.
... uma velha nora que já tirou muita água para regas os terrenos envolventes ...
É decerto uma coisa estupenda poder caminhar pelos pomares, rodeado de milhares de flores brancas, descobrir pequenos detalhes na paisagem, tentar arquivar na memória, tanto quanto for possível, esse sortilégio, como coisa pessoal e intransmissível.
... uma casa na Aldeia ...
A mancha branca, que domina o Passal, apesar da chuva insistente, resiste. Todos os dias, que posso, para lá olho e fico feliz por elas resistirem. Penso, aliás, que o cartaz atravessa também as quatro estações.
... castelo de Monforte de Rio Livre (monumento nacional), por entre as árvores ainda despidas ...
Vemos as flores e estamos já a sonhar com as cerejas vermelhas e depois porventura com o outono na Aldeia que é outra imagem mágica.
... cavando a terra seca ...
Poucas árvores têm tanta presença na cultura. Desde "O Cerejal", de Tchekov, àquela mítica canção da Comuna com que Yves Montand nos fazia bater mais depressa o coração, "Le Temps des Cerises", até à poesia em que a cereja se transforma abundantemente em metáfora de amor.
... perdiz, olhando de lado, com ar desconfiado ...
A natureza é mãe de todos E a todos trata com cuidado Pois como toda mãe que ama Não quer seu filho maltratado …
... a diferença na igualdade ...
Mas o homem, filho desobediente E muitas vezes mal educado Não dá a mãe natureza O carinho que devia ser dado …
... o relógio de sol na igreja matriz (não precisa de se lhe dar corda, colocar pilhas ou ligar à corrente) mas temperamental como é só mostra as horas se o sol aparecer ...
Polui o ar , contamina a água Leva destruição para todo lado Corta a árvore , mata a planta Mata até o bicho , coitado !…
... casas na Aldeia, junto à estrada nacional ...
Ei homem , fique esperto Deixe de ser atolado Aprenda a preservar e reciclar E viva bem sossegado !
... no meio do verde sempre aparece uma árvore que para se destacar se vestiu de alvas flores
Amar não é só a Natureza e Pessoas, mas passa por todas as coisas boas da Vida, exercitando todos os nossos sentidos: visão; audição; olfato e também o sabor ....
... imagem de rara beleza, mas ainda melhor será a sua degustação.
Este fumeiro não é industrial,
mas sim fruto, de mãos hábeis e fiéis à ancestral tradição ...
... é preciso limpar o terreno das ervas daninhas, para se poder iniciar as sementeiras e plantações ...
“A névoa involve a montanha, Húmido, um frio desceu. O que é esta mágoa estranha Que o coração me prendeu?
... uma casa que ainda nos relembra o passado da Aldeia ...
Parece ser a tristeza De alguém de quem sou actor, Com fantasiada viveza Tornada já minha dor.
... os potes de ferro, em lareira limpa ...
Mas, não sei porquê, me dói Qual se fora eu a ilusão; E há névoa em tudo o que foi E frio em meu coração.”
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa
... a igreja matriz banhada pela luz brilhante dos esporádicos raios de sol ...
Em 1930, Fernando Pessoa publicou num do jornal açoriano um poema até então inédito. “Névoa” apareceu junto a “Minuete Invisível”, que tinha sido apresentado pela primeira vez no primeiro (e único) número da Portugal Futurista, e a um texto de apresentação assinado pelo jornalista Rebelo de Bettencourt.
... o gato apanhando os preciosos raios de sol em dias de inverno ...
Depois dessa data, o poema não voltou a ser publicado. Caiu no esquecimento, até que um investigador o encontrou, por acaso, mais de 80 anos depois.
... uma antiga e tradicional varanda transmontana (que penso que já não existe) ....
Agora, entrou finalmente para o corpus pessoano, ao ser incluído no mais recente volume da edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM).
... o flamejante pôr do sol, atrevido, em dias de inverno ...
... o branco é a cor dominante em dias de nevada ...
"Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável, Porque para o meu ser adequado à existência das cousas O natural é o agradável só por ser natural.
... a importância da caixa de correio ...
Aceito as dificuldades da vida porque são o destino, Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno — Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita, E encontra uma alegria no facto de aceitar — No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.
... o ferrolho (a fechadura que não precisava de código nem ligação à Central de Segurança) ...
Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida? O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime, Da mesma inevitável exterioridade a mim,Que o calor da terra no alto do Verão E o frio da terra no cimo do Inverno.
... carregando os fardos de feno para as vacas ...
Aceito por personalidade. Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos, Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
... uma casa, restaurada, na Aldeia ...
Nunca ao erro de querer compreender só corri a inteligência, Nunca ao defeito de exigir do Mundo Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo."
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" Heterónimo de Fernando Pessoa
... o cavalo que interrompeu a sua refeição para posar para a foto ...
Gordo, gordinho, matulão, o porco chega ao terreiro, conduzido por aquele que havia de lhe pôr termo aos dias de ceva. Mirones, apesar do chuvisco frigidíssimo. Motivo para estar ali um garrafão encarapuçado por um púcaro de alumínio. «Vai um?» «Claro!» Dantes, já lá vão uns anitos, quando eu assistia ao ritual, reparava em um ou dois molhos de palha que se destinavam a faxucar o animalzinho; agora olho, com alguma nostalgia, para uma botija de gás. O fumo da palha tinha outro encanto, carregada que era de símbolos sacrificiais.
... uma vista "apertada" de uma parcela da Aldeia ...
Um facalhão, tachos, um balde e a senhora ......., lesta, apesar da idade, a encher um regador no fontanário próximo. «Vamos a isto, rapazes» – voz de comando do senhor ....... que prende uma corda na boca do animal, segurando-a bem entre as duas queixadas. «E o banco? Traga o banco», diz a afanosa ........ «Qual banco, responde o dono. – Vai ser aí em cima do muro».
E eu a cismar: aquele bloco ancho de cantaria sempre tinha mais parecença com uma pedra de ara.
«Espere aí: deixe-me beber mais uma pucarada» – voz de um rapazola que esfregou as beiças com as costas da mão.
... a lua entre os pinheiros ...
O porco, desconfiado do sítio, tinha fossado uma borda de rango e leitugas, abrindo-lhe um sulco direito de sachola. Os cochilros que inundavam a parede espreitavam a cerimónia. Quatro homens aferraram-se ao colosso e foi então que o berreiro a sério começou. A proximidade do sacrifício é o melhor estímulo da sensibilidade.
... levando a vaquinha para um melhor pasto ...
As mãos dos homens confundiram-se num momento com as da besta. A razão e a força. As queixas de um na ufania do outro. Sempre assim foi – pensaria uma leituga prostrada na lamiça. Ao tempo em que a senhora ........ aparava o sangue ainda vivo num tacho, frémitos de cozinha alegravam o coração dos circunstantes. Alguém voltara os olhos, quando o facalhão perfurou a peitaça do animal. «Ora, não sejas maricas» – teve de ouvir.
... os grelos floridos colorindo a visão da Aldeia ...
«Venha o maçarico, venha o maçarico». E o fogo acendeu júbilos novos nas sedas do ridente chacim. Amolecido com água quente, o couro foi raspadinho com lascas de pedra rugosa e, logo a seguir, pendurado na loja onde o tal maricas se pôs a farejar. Pudera! Já a senhora ........ descia com uma travessa de bolos de bacalhau e fatias de salpicão a dizerem «comei-me».
... um caçador e os seus cão (mas não vislumbro caça nenhuma) ...
Sape, gato – voz a ralhar a um ougado, porque o senhor magarefe ainda estava rec-rec com a alimária. Sape, gato – repetiu a patroa, ao descer novamente as escadas com um açafate de trigo de quartos numa mão e uma caçarola de sangue cozido com alho picado na outra. Já o tal se havia desougado, fazendo mão baixa à travessa.
... pela rua da Lampaça ...
Interim, ........ tinha aberto o formoso bestigo, de alto a baixo, e fazia a colheita do interior. Primeiro, as tripas, que encheram um balde; depois, a colada: fígado, pulmões e coração. Finalmente, os untos ou banha que, depois de atravessar três bilhardas à entrada da barriga, para efeito de arejamento, deixou a pingar de uma delas.
«Tens-me cá uma colada», ouvi uma mulher dizer ao tal que parecia maricas e que acabava de abichar uma rodela de salpicão. Vim a saber que o que ela queria dizer era que o outro era um mandrião. Comia e dormia. Como o porco. A gente riu-se. E, quando mestre .......... acabou de lavar as mãos, fiquei admirado por ele não meter à boca mais do que um bolo de bacalhau, recusando os pedaços quentinhos de sangue cozido – que para mim estavam uma delícia.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa. in: "Tradições populares" - https://www.antoniocabral.com.pt/matanca-do-porco/
Ontem o dia amanheceu sem cor, sem rumo e sem graça.
O sol morno do inverno brilhava tão intensamente que chegava a incomodar os meus olhos cansados de enxergar um mundo que se esconde tão longe de mim.
... a água corre com movimento lento e cadenciado pelos ribeiros ...
Meus pensamentos flutuavam no vazio e as minhas esperanças fugiram em revoada pelo céu.
Acordar no limiar da tristeza é como abrir as janelas da alma e ver um jardim soterrado pelos escombros do tempo.
... o branco da igreja matriz destacando-se por entre o castanho do arvoredo ...
A vida se paralisa quando sorrir se torna um fardo.
Ontem eu fui assim, mas eu me resignei por saber que eu já estive presente em dias melhores e piores também.
Viver é um risco que se corre aos pouquinhos.
Não adianta ter pressa e nem ficar esperando que novidades caiam do céu.
... a concha no alto do pórtico de Cimo de Vila (símbolo do Caminho de Santiago ?) ...
E, ao caminharmos nessa toada que acontece a deriva da nossa vontade, jamais viveremos um dia igual ao outro.
É inevitável que bons e maus momentos se alternem durante a nossa trajetória.
Mas, graças a Deus, se ontem as coisas não estiveram tão bem quanto eu desejei pra mim, hoje tenho pela frente a grande chance de mudar tudo e fazer do meu dia, um dia muito melhor de se viver.
... apoiados nos seus cajados, os pastores vigiando o rebanho de ovelhas ...
Nem sempre tão doce, nem sempre tão amargo. O que pode nos inundar de esperança é a possibilidade permanente de podermos misturar um pouco dos prazeres e das dores que vivemos, para atingirmos uma medida ideal de alegria que possa nutrir as nossas vidas.
Ontem o dia amanheceu sem cor, sem rumo e sem graça...
... parcela da Aldeia por entre os grelos floridos ...
Mas, apesar de qualquer contratempo que eu possa ter pela frente, sempre terei a oportunidade de poder dizer a mim mesmo que um dia triste é coisa que passa, mas a felicidade quando chega, chega cheia de vontade de parar as horas e se eternizar.
"Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva Não faz ruído senão com sossego. Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva Do que não sabe, o sentimento é cego. Chove. Meu ser (quem sou) renego..".
... A cancela meio aberta ou ... meio fechada ...
Tão calma é a chuva que se solta no ar (Nem parece de nuvens) que parece Que não é chuva, mas um sussurrar Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece. Chove. Nada apetece...
... um olhar restrito, para a Aldeia ...
Não paira vento, não há céu que eu sinta. Chove longínqua e indistintamente, Como uma coisa certa que nos minta, Como um grande desejo que nos mente. Chove. Nada em mim sente...
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
... a fonte ... que já foi de muito valor para a Aldeia mas que só ficou na memória dos mais antigos, da sua importância e valor para a Aldeia de antão ..
Dias de hibernar
Inverno: frio... Chuva...
Hora de resgatar cachecol, luva
Botas, casacos... Pura elegância!
E neste quesito, já tenho vivência.
Bom seria não ter que sair.
... uma casa restaurada ... em cor vibrante ...
Um café ou chá quentes
O escalda-pé ou aspirina
O inverno nos deixa dormentes
Apegados à cama, é sina.
... o cordeiro e a Aldeia como fundo ...
Ainda que o frio lá fora
Embace o vidro e a alma
O sereno fino cai e chora
A solidão da noite calma.
... pôr do sol neste pequena, mas bela Aldeia transmontana ...
Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite.
... vista sobre Cimo de Vila ...
Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe, como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos.
E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.
Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador.
Tudo parado e mudo. Apenas e move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:
– Para cá do Marão, mandam os que cá estão!…
... o cão atento, vigiando a entrada de casa ...
Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: – Entre!
A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.
... ó lua que vais tão alto, iluminando a noite desta terra do Reino Maravilhoso ...
A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua.
Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.
Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre os rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta angústia.
E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.
... planta encarnada que rompe por entre as folhas já a entrarem em decomposição ...
Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre.
Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra-Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem.
E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo. A terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão.
Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde: – Entre quem é! Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva.
... nicho de S.ta Rita - manifestação da devoção cristã das Gentes da Aldeia ...
Nos códigos e no catecismo o pecado de orgulho é dos piores. Talvez que os códigos e o catecismo tenham razão. Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada.
Dentro ou fora do seu dólmen (maneira que eu tenho de chamar aos buracos onde vive a maioria) estes homens não têm medo senão da pequenez. Medo de ficarem aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura.
... na estreita rua D.ª Alice Chaves ...
Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura emigram. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles. Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia.
O nome de Trasmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei.
in: "Trás-os-Montes, o Reino Maravilhoso" de Miguel Torga
Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido talvez ou sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumadas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.