Águas Frias (Chaves) - ... a tradicional matança do porco ...
Mário Silva Mário Silva
A TRADICIONAL MATANÇA DO PORCO
... a tradicional matança do porco ...
Gordo, gordinho, matulão, o porco chega ao terreiro, conduzido por aquele que havia de lhe pôr termo aos dias de ceva. Mirones, apesar do chuvisco frigidíssimo. Motivo para estar ali um garrafão encarapuçado por um púcaro de alumínio. «Vai um?» «Claro!» Dantes, já lá vão uns anitos, quando eu assistia ao ritual, reparava em um ou dois molhos de palha que se destinavam a faxucar o animalzinho; agora olho, com alguma nostalgia, para uma botija de gás. O fumo da palha tinha outro encanto, carregada que era de símbolos sacrificiais.
... uma vista "apertada" de uma parcela da Aldeia ...
Um facalhão, tachos, um balde e a senhora ......., lesta, apesar da idade, a encher um regador no fontanário próximo. «Vamos a isto, rapazes» – voz de comando do senhor ....... que prende uma corda na boca do animal, segurando-a bem entre as duas queixadas. «E o banco? Traga o banco», diz a afanosa ........ «Qual banco, responde o dono. – Vai ser aí em cima do muro».
E eu a cismar: aquele bloco ancho de cantaria sempre tinha mais parecença com uma pedra de ara.
«Espere aí: deixe-me beber mais uma pucarada» – voz de um rapazola que esfregou as beiças com as costas da mão.
... a lua entre os pinheiros ...
O porco, desconfiado do sítio, tinha fossado uma borda de rango e leitugas, abrindo-lhe um sulco direito de sachola. Os cochilros que inundavam a parede espreitavam a cerimónia. Quatro homens aferraram-se ao colosso e foi então que o berreiro a sério começou. A proximidade do sacrifício é o melhor estímulo da sensibilidade.
... levando a vaquinha para um melhor pasto ...
As mãos dos homens confundiram-se num momento com as da besta. A razão e a força. As queixas de um na ufania do outro. Sempre assim foi – pensaria uma leituga prostrada na lamiça. Ao tempo em que a senhora ........ aparava o sangue ainda vivo num tacho, frémitos de cozinha alegravam o coração dos circunstantes. Alguém voltara os olhos, quando o facalhão perfurou a peitaça do animal. «Ora, não sejas maricas» – teve de ouvir.
... os grelos floridos colorindo a visão da Aldeia ...
«Venha o maçarico, venha o maçarico». E o fogo acendeu júbilos novos nas sedas do ridente chacim. Amolecido com água quente, o couro foi raspadinho com lascas de pedra rugosa e, logo a seguir, pendurado na loja onde o tal maricas se pôs a farejar. Pudera! Já a senhora ........ descia com uma travessa de bolos de bacalhau e fatias de salpicão a dizerem «comei-me».
... um caçador e os seus cão (mas não vislumbro caça nenhuma) ...
Sape, gato – voz a ralhar a um ougado, porque o senhor magarefe ainda estava rec-rec com a alimária. Sape, gato – repetiu a patroa, ao descer novamente as escadas com um açafate de trigo de quartos numa mão e uma caçarola de sangue cozido com alho picado na outra. Já o tal se havia desougado, fazendo mão baixa à travessa.
... pela rua da Lampaça ...
Interim, ........ tinha aberto o formoso bestigo, de alto a baixo, e fazia a colheita do interior. Primeiro, as tripas, que encheram um balde; depois, a colada: fígado, pulmões e coração. Finalmente, os untos ou banha que, depois de atravessar três bilhardas à entrada da barriga, para efeito de arejamento, deixou a pingar de uma delas.
... Papa-moscas (comum) Ficedula hypoleuca Pied flycatcher ...
«Tens-me cá uma colada», ouvi uma mulher dizer ao tal que parecia maricas e que acabava de abichar uma rodela de salpicão. Vim a saber que o que ela queria dizer era que o outro era um mandrião. Comia e dormia. Como o porco. A gente riu-se. E, quando mestre .......... acabou de lavar as mãos, fiquei admirado por ele não meter à boca mais do que um bolo de bacalhau, recusando os pedaços quentinhos de sangue cozido – que para mim estavam uma delícia.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.
in: "Tradições populares" - https://www.antoniocabral.com.pt/matanca-do-porco/
Até breve !!!