Conto de Natal - O Natal da Senhora Clementina Panoquinhas
Mário Silva Mário Silva
Conto de Natal
O Natal da Senhora Clementina Panoquinhas
Na pequena aldeia de Frescura d’Água, em pleno coração de Trás-os-Montes, o frio cortava como lâminas naquela véspera de Natal.
As casas de pedra, cobertas de musgo, exalavam um cheiro de lenha queimada, e as chaminés enchiam o ar com uma névoa que parecia misturar-se com as estrelas que despontavam no céu límpido.
Era uma aldeia esquecida pelo tempo, onde as tradições se mantinham vivas, e o Natal era celebrado com a mesma simplicidade de décadas atrás.
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Clementina Panoquinhas, uma viúva de 76 anos, morava sozinha na última casa da aldeia, à beira de um caminho de terra que subia para o monte.
Desde que perdera o marido, o Sr. Ferraz do Dedo Grande, há vinte anos, a sua vida era marcada pela solidão e pelas lembranças.
Contudo, todos na aldeia conheciam Clementina Panoquinhas pela sua bondade e pela habilidade em fazer o melhor pão de centeio da região.
No Natal, ela tinha o costume de preparar broas doces e distribuí-las pelos vizinhos mais necessitados.
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Naquela noite, enquanto o vento zunia pelas frestas das janelas, Clementina Panoquinhas estava na sua cozinha, amassando a última fornada de broas.
O velho relógio de parede marcava as onze horas.
O calor do forno aquecia-lhe as mãos e o coração, mas a solidão parecia mais pesada do que nunca.
Era a primeira vez que não haveria ninguém para partilhar a ceia.
Os filhos tinham emigrado para França e não conseguiriam vir por causa do trabalho.
Mesmo assim, Clementina Panoquinhas decidira manter a tradição.
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Quando terminou as broas, enrolou-as num pano branco e colocou-as numa cesta de vime.
Vestiu o seu xaile de lã, gasto pelo tempo, e saiu pela porta, enfrentando o frio que fazia doer os ossos.
As ruas da aldeia estavam desertas, mas havia uma magia no ar.
Algumas janelas iluminadas deixavam escapar o som abafado de risos e cantorias.
Clementina Panoquinhas caminhava devagar, depositando uma broa na soleira de cada casa humilde, com um sorriso nos lábios e uma prece no coração.
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Quando terminou, sentiu-se exausta, mas em paz.
Ao voltar para casa, reparou que o céu estava extraordinariamente estrelado, como se o firmamento quisesse dar-lhe um presente.
Sentou-se no banco de pedra junto à porta e olhou para o céu, lembrando-se de Sr. Ferraz do Dedo Grande.
"Que Deus te tenha em paz, meu querido... Se ao menos estivesses aqui" - sussurrou.
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De repente, ouviu um som que a fez sobressaltar.
Era o trote de cavalos, algo raro na aldeia.
Virou-se e viu, no caminho iluminado apenas pela lua, um velho carro de bois decorado com ramos de azevinho e lanternas.
No banco da frente, um homem idoso, de barba branca e um sorriso gentil, segurava as rédeas. Ao lado dele, um jovem com roupas simples segurava um saco volumoso.
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"Senhora Clementina Panoquinhas!" - chamou o homem, com uma voz calorosa.
"Será que podemos entrar? Temos uma mensagem para si."
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Clementina Panoquinhas, surpresa, assentiu e abriu a porta, embora o coração lhe batesse forte.
Assim que os dois homens entraram, a casa pareceu aquecer de forma inexplicável.
O homem mais velho entregou-lhe um pequeno embrulho, envolto em papel pardo e uma fita vermelha.
Clementina Panoquinhas, com as mãos trémulas, abriu-o e encontrou uma fotografia antiga dela e de Sr. Ferraz do Dedo Grande, tirada no Natal de 1953.
Lá estava ela, jovem e sorridente, segurando um bebé nos braços, enquanto Sr. Ferraz do Dedo Grande olhava para ela com ternura.
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"Mas... como conseguiram isto?"- perguntou, com os olhos marejados de lágrimas.
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"Este é o espírito do Natal, minha senhora" - respondeu o homem, com um sorriso enigmático.
"Um presente para lembrar que o amor nunca se perde, mesmo quando aqueles que amamos estão longe, ou já partiram."
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Antes que Clementina Panoquinhas pudesse dizer mais alguma coisa, os dois visitantes despediram-se e desapareceram tão rapidamente quanto tinham chegado.
Clementina Panoquinhas ficou na porta, segurando a fotografia contra o peito, com o coração inundado de gratidão e paz.
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Naquela noite, enquanto a aldeia dormia, Clementina Panoquinhas colocou a fotografia junto ao presépio.
Sentiu, pela primeira vez em muito tempo, que não estava sozinha.
O Natal de Frescura d’Água tornara-se mais brilhante, como se o céu e a terra conspirassem para lembrar que a magia do amor e da partilha nunca desaparece.
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E assim, na madrugada fria, as estrelas pareciam sorrir.
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A TODOS UM BOM e SANTO NATAL
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Texto & Fotografia: ©MárioSilva
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