O conto: "A Rampa Escorregadia de Cimo de Vila"
Mário Silva Mário Silva
A Rampa Escorregadia de Cimo de Vila
A neve havia embranquecido toda a aldeia de Cimo de Vila, trazendo um silêncio profundo, interrompido apenas pelo tilintar ocasional dos flocos de gelo que se desprendiam dos beirais.
A rampa que ligava o topo ao centro da aldeia parecia um tapete de cristal.
Ninguém ousava atravessá-la à noite... exceto, claro, Sarafim "Trôpego", conhecido não só pelo equilíbrio duvidoso, mas também pela paixão pelos copitos de aguardente.
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Naquela noite, Sarafim tinha visitado a tasca do Quim da Esquina.
Entre conversas sobre os lobos que rondavam as serras e as histórias exageradas sobre as colheitas, Sarafim havia aquecido o espírito com generosas doses do néctar forte da aldeia.
Sentia-se invencível e, sobretudo, com uma coragem de leão para enfrentar a rampa traiçoeira.
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Com o casaco mal abotoado e um gorro torto, Sarafim começou a descer o caminho.
A lua cheia iluminava a neve com um brilho quase mágico.
- Isto tá um espelho! - disse, enquanto soltava um riso misturado com um soluço.
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Ao primeiro passo, um leve deslize.
Sarafim riu, ajustou a postura e continuou.
No segundo passo, o chão pareceu querer abraçá-lo, mas ele manteve o equilíbrio com uma dança desajeitada.
No terceiro, não teve a mesma sorte: o pé esquerdo escorregou, o direito foi atrás, e Sarafim transformou-se num trenó humano.
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- Ai valha-me Nossa Senhora das Botas de Fricção! - gritou enquanto deslizava.
A rampa parecia não ter fim.
Tentou travar com as mãos, mas o gelo estava tão polido que parecia um sabão.
Passou em frente à casa da Dona Gertrudes, que espreitava pela janela.
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- Ó Sarafim, isso é um trenó ou estás a testar o gelo?! - gritou ela, gargalhando.
Sarafim, sem conseguir responder, soltou um "Uuuhhh, lá vou euuu!" enquanto girava em círculos.
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Mais abaixo, o cachorro do senhor Anacleto, um pequeno, mas audacioso cão chamado Piloto, viu Sarafim aproximando-se a toda velocidade.
Piloto, na sua inocência canina, decidiu brincar e correu atrás do "intruso deslizante".
Agora, Sarafim era seguido por um cão entusiasmado que latia como se estivesse numa perseguição policial.
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Quando chegou ao fim da rampa, o inevitável aconteceu.
Sarafim embateu num monte de lenha empilhada.
A madeira voou, o cachorro latiu, e o som ecoou pela aldeia.
Mas, surpreendentemente, Sarafim levantou-se, sacudiu a neve das roupas e declarou com orgulho:
- E é assim, meus amigos, que se faz a descida mais rápida de Cimo de Vila! Alguém me traz um copito para celebrar?"
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A aldeia inteira acordou com as risadas e, nos dias seguintes, a história do "trenó humano" de Sarafim espalhou-se como um incêndio.
Dizem que, até hoje, ele insiste que foi tudo planeado.
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E assim, a rampa de Cimo de Vila ganhou um novo nome: "A Pista do Sarafim Trôpego".
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Conto & Fotografia: ©MárioSilva
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